Ontem
Um daqueles contos que quando a gente se dá conta misturou muita realidade no que era pra ser ficção
Estar naquele ônibus já tinha aflorado inúmeras sensações distintas, mas descer dele naquela rodoviária provocou uma angustia nostálgica e certeira. Olhar aqueles portões, aquela rua, tão familiares como o próprio corpo, trazia uma dor doce, um prazer pungente. Uma sensação de ter voltado no tempo, tão almejada durante esses 11 anos, tomou conta de todos os sentidos como se fosse possível sentir até o gosto daquela cidade. Ela não sabia, mas todo esse ritual tinha um papel fundamental na decisão que deveria ser tomada.
Pensou em fazer o percurso caminhando, assim mais lembranças iriam aflorar e ela poderia se deliciar ainda mais com aquela dor. Porém, o vento cortante do inverno fazia com que desejasse muito mais o conforto e o calor de um taxi. Acabou por caminhar, num misto de sensações.
Como odiava a posição em que estava! Como odiava tomar decisões importantes. Aquelas decisões em que se passa a vida inteira pensando no que aconteceria se tivesse sido diferente. Como nas palavras de Manuel Bandeira: a vida inteira que podia ter sido e que não foi...
Chegou na porta, enxugou as mãos suadas mesmo com o frio de 13ºC, estendeu a mão para tocar a campainha, recuou, quis desistir, fazer o caminho de volta à rodoviária. E se ele estivesse feliz vivendo a sua vida? Se não tivesse sentido a falta dela em todos esses anos? Ou pior, e se ninguém abrisse aquela porta? Se ela não tivesse nem a chance de explicar o que aconteceu?
Respirou fundo, apertou aquele botão. Precisava dar um basta nas incertezas e, também, pedir perdão. Foram só 30 segundos mas a espera parecia ter se estendido por minutos, ou horas, até que aquele rosto familiar e seguro abriu a porta. Ela tremeu e teve um mau pressentimento com a sua expressão, porque ele sempre foi muito sincero com o que sentia e não conseguia aceitar até hoje não ter recebido o mesmo. É que o processo de aceitar que as pessoas não farão por você o mesmo que você faria por elas é lento. Lento demais.
Ela estava ali por inteiro agora. Desistiu de um amor, e de inúmeras oportunidades de ser feliz, por medo, insegurança, por se sentir insuficiente, por querer agradar o inimaginável e mesmo com medo de quebrar a cara, de partir o coração de uma nova maneira, não queria perder nem mais um segundo.
Texto escrito em maio de 2021 para o curso de escrita criativa de INQUIETUDES por Liliane Prata



Muito bonito. Adorei o subtítulo da postagem! "Um daqueles contos que quando a gente se dá conta misturou muita realidade no que era pra ser ficção". O meu segundo livro, que é de ficção...ou deveria ser, rsrs..está ainda engavetado. Mas as poucas pessoas que já o leram falaram que a personagem é muito "autobiográfica"...De início fiquei me achando um fracasso. Mas depois me lembrei do que disse John Green na edição especial de "Quem é você Alasca"...onde ele responde algumas perguntas de fãs.
Ele disse em uma resposta, algo como:
- Todo escritor começa escrevendo sobre aquilo que sabe, ou seja, aquilo que já viveu ou já sentiu.
Me acalentou muito ler isso ;)
Obrigada! Tenho ouvido bastante isso mesmo. Cada coisa no seu tempo